As principais fístulas que ligam o sistema urinário feminino com o sistema genital são: fistulas ureterovaginal, uretrovaginal, vesicouterina e a vesicovaginal.
Esse trajeto fistuloso é, respectivamente, correspondido pela comunicação entre: o ureter e o canal vaginal; uretra e o canal vaginal; bexiga e o útero; bexiga e o canal vaginal. Todas essas patologias prejudicam a qualidade de vida da paciente portadora.
As FVV’s são consideradas desordens raras do aparelho geniturinário, sua incidência, gira em torno de e 0,3-2% . Há de 50.000 a 100.000 novos casos de mulheres que sofrem com as consequências provocadas por essas alterações anatômicas por ano no planeta, como a incontinência urinária (mesmo apresentando competência esfincteriana) devido à descarga urinária involuntária por via vaginal, alteração da microbiota vesical e vaginal, infecções do trato urinário inferior (cistite) e superior (pielonefrite), dispareunia, dor lombar, dermatite, degeneração maligna do urotélio, dificuldade de socialização, limitações para realizar atividades laborais que cursam com aumento da pressão abdominal interna .
A FVV apresenta etiologias variáveis de acordo com a localização geográfica em âmbito global. Uma inadequada assistência obstétricas, como por exemplo o trabalho de parto prolongado, representa cerca de 95% dos casos em países que possuem poucos recursos (técnicos, instrumentais e de mão de obra especializa) . O trabalho de parto prolongado é definido como o processo de dilatação cervical e/ou descida fetal lentificada durante a fase ativa do trabalho de parto, que inicia-se após o colo uterino apresentar dilatação ≥ 4 cm, sendo que normalmente, o processo de descida do polo cefálico fetal pelo canal de parto e a dilatação cervical ocorrem simultaneamente em uma velocidade de pelo menos 1 cm/h .
A desproporção cefalopélvica e a presença de contrações uterinas ineficientes são as principais causas.. A compressão contínua do polo cefálico sobre a região anterior da pelve materna provoca processos isquêmicos na bexiga e em órgãos adjacentes, que evoluem para regiões de necrose, podendo favorecer assim que o processo de fistulização se desenvolva . Em contrapartida, nos países mais desenvolvidos uma diferente etiologia se destaca: 83,2% dos casos estão relacionados a procedimentos cirúrgicos, destacando as cirurgias relacionadas a tumores benignos e malignos na pelve, cirurgias urológicas, cirurgias ginecológicas e cesarianas e histerectomia por via vaginal e abdominal (aberta e fechada). Os traumas intraoperatórios (iatrogenias) de algum seguimento da bexiga e/ou formação de hematomas e intensas dissecções, que propiciam o processo inflamatório e comunicação entre órgãos costumam estar presentes em todas essas intercorrências ).
A cesariana é a principal
A cesariana é a principal via de parto no Brasil, sendo que 55% deles ocorrem por via alta, uma das maiores taxas mundiais . A figura 1 ilustra a distribuição das altas taxas de cesarianas em países com mais recursos e as baixas taxas do emprego da via cirúrgica para realização do parto em países com poucos recursos, o que explica a etiologias das FVV’s em cada contexto. Reforçando assim o importante fator de risco na sociedade brasileira. Na tabela 1 são evidenciados situações de adoção da cesariana somente nos casos em que realmente exista condição clínica que justifique o emprego desta via de parto.
Para o diagnóstico da precoce das FVV’s é necessário a existência de uma boa relação médico-paciente associado a uma anamnese bem feita onde os fatores de risco associados sejam identificados e pesquisados de acordo com cada caso. Dentro do contexto social é fundamental a confiança por parte das pacientes em relatar o aparecimento de sintomas que as incomodem a fim de o quanto antes procurem atendimento e identificarem a origem do desconforto, por outro lado é de extrema relevância a comunicação da equipe que promove a assistência, orientar de modo individualizado para que o adequado entendimento não deixe brechas para fatores como a baixa escolaridade, atrasem o diagnóstico e as devidas intervenções corretivas .
Indicações Absolutas Indicações Relativas
Herpes genital ativo Doença hemolítica perinatal
Prolapso de cordão Macrossomia fetal; Gemelares
Tumores obstrutivos (condiloma vulvar extenso) Problemas uterinos (colo desfavorável à indução de parto, discinesia)
Deformidades pélvicas Gestante HIV com carga viral < 1000 cópias
Morte materna com feto vivo Apresentação Pélvica
Placenta prévia total Oligodraminia
Desproporção cefalopélvica Feto não reativo
Descolamento prematuro da placenta com feto viável Extremos de idade materna e fetal (Prematuridade extrema, primípara idosa)
Cicatriz uterina corporal prévia Pré-eclampsia
Situação transversa Mais de uma indicação relativa
Fonte: BETRÁN et al.
Antes de qualquer coisa, um diagnóstico precoce visando melhorar o desfecho clínico do paciente é necessário. Para isso, a relação médico-paciente deve ser favorável para que se possa obter uma anamnese rica em detalhes clínicos. O contexto social também é fundamental para que ocorra uma abordagem individualizada, sendo que a comunicação à equipe que promove a assistência e a orientação não deixe de englobar fatores que atrasem o diagnóstico e possíveis intervenções.
Tomografia computadorizada
Como forma de alcançar tais objetivos, pode-se lançar mão de exames complementares que se fazem úteis no estadiamento e confirmação das FVV’s. Exames como a cistografia, urografia excretora, uretrocistografia retrograda, cintilografinal renal, ultrassonografia cistoscopia, vaginoscopia, vaginografia, tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética apresentam valores significativos de sensibilidade e auxiliam nesse contexto. Nos últimos anos, a cistografia por TC com múltiplos detectores associado ao uso de tampão vaginal auxiliou de forma significativa na identificação de detalhes anatômicos que auxiliam no gerenciamento das fístulas urogenitais e, com isso, na classificação das mesmas.
Quanto à classificação, leva-se em conta sua localização (ureterovaginal uretrovaginal, vesicouterina ou vesicovaginal) e seu grau de complexidade em simples (tamanho ≤ 0,5 cm, sem irradiação e única) ou complexa (tamanho ≥ 0,6cm, múltiplas irradiações e se recorrente). Feito isso, é a hora de planejar a intervenção de forma individualizada priorizando todos os fatores do paciente como risco cardiovascular, alergias medicamentosas, comorbidades prévias e o desejo do paciente. .
O tratamento é sempre cirúrgico, mas em determinadas situações medidas intervencionistas não invasivas podem ser adotadas diante de um quadro assintomático. Diante de um sintomático, observa-se melhora sem intervenção cirúrgica em apenas 15% dos casos. (BODNER-ADLER et al., 2017; TORLONI et al., 2018). O acesso pode ser por via transvaginal, por laparotomia ou por via laparoscópica e o tempo médio de surgimento da fístula de origem iatrogênica em função de procedimento cirúrgico gira em torno de 10 dias (ANGIOLI et al., 2003), sendo que o período aproximado de 12 semanas é o recomendado por grande parte dos autores para qualquer abordagem. Qualquer atraso pode repercutir com maior quantidade de fibroses na fístula ocasionando maior dificuldade em sua ressecção e, com isso, um pior prognóstico.
Características intrínsecas da fístula
É fundamental analisar a etiologia, características intrínsecas da fístula (localização, tamanho, presença ou não de irradiações prévias, recorrência), capacidade de fornecer um reparo efetivo, livre de tensão, campo visual necessário para o procedimento e experiência do cirurgião com o método para escolher a melhor via de acesso cirúrgico. . A via transvaginal geralmente é a mais escolhida pelos médicos ginecologistas e obstetras, por exigir uma menor técnica, tempo operatório e menor curva de aprendizado (. Além disso, apresenta maior taxa de sucesso muito semelhante à técnica por via transabdominal e laparoscópica/robótica, que Bodner-Adler et al (2017) relata ser de 93,82%, 97,05% e 98,87% respectivamente. A abordagem assistida por robótica é a tecnologia mais recente e mais elaborada no reparo das FVV’s . No entanto, a via transvaginal é contraindicada em casos de fístulas de localização posterior, complexas, irradiadas, recorrentes, ou qualquer outra situação que resulte na incapacidade visualização da fístula
O tratamento das FVV’s por via laparoscópica é um dos exemplos de cirurgias minimamente invasivas (CMI) que vieram para substituir as laparotomias a céu aberto, visando um menor trauma cirúrgico, menor taxa de sangramento, diminuição da resposta endócrino-metabólica ao trauma, menor número de complicações, recidivas menos frequentes, resolubilidade em um único tempo cirúrgico, o que acelera retorno do paciente à sua rotina. . A evolução tecnológica dentro das CMI está em crescente desenvolvimento, um exemplo seriam as técnicas laparoscópicas voltadas para a correção das FVV’s: por método transvesical, por método transperitoneal, de incisão única para inserção dos equipamentos e com auxilio da robótica . No quadro 3 podemos comparar algumas características envolvendo a laparotomia e a laparoscopia.
A laparoscopia apresenta diversos benefícios, no entanto eles só estão presentes em profissionais devidamente qualificados e experientes, exigindo uma maior curva de aprendizado realizada durante o treinamento nos programas de residência médica e em outros cursos de pós-graduação em CMI . As principais dificuldades enfrentadas para o uso da laparoscopia são a longa curva de aprendizado e os valores elevados, tanto no processo de aprendizado quanto no material cirúrgico empregado ).
Sabe-se que as cirurgias micro-invasivas, como laparoscopia e cirurgia robótica, repercutem com um pós-operatório mais simples e utilizam os mesmos princípios de uma laparotomia. Desse modo, acaba por ser a escolha de preferência das FVV’s, principalmente se tratando de fístulas mais complexas e irradiadas, uma vez que estas podem acarretar dificuldade de acesso via vaginal . Contudo, como dito anteriormente, a escolha pela modalidade cirúrgica é multifatorial e deve levar em consideração as características da fístula, recursos disponíveis, sintomas e desejos da pacienta assim como a competência técnica por parte do cirurgião .