As comunicações entre as ilhas

O acesso à vila passa a ser realizado mediante o cruzamento de terras privadas, uma vez que a comunidade está estabelecida distante da rodovia, passando a ter o direito de ir e vir monitorado pela empresa, o que expressa uma mobilidade mascarada que tardou em ser conquistada. Matarandiba nunca foi uma ilha isolada, sempre esteve conectada a outras localidades. Segundo Machado (2014), a proximidade dessas localidades com análoga formação histórica e sua localização numa rota migratória da região, permitia que as pessoas girassem de um lugar para outro em busca de melhores condições de vida, levando consigo seu legado cultural e sua memória. Em 1970 com a inauguração da ponte João das Botas, (Ponte do Funil) foi estabelecida a ligação entre a Ilha de Itaparica, a Ilha de São Gonçalo e o Recôncavo Baiano, concomitante a instauração do sistema Ferry-Boat em 1972, conectando por sua vez o Recôncavo, a Ilha de Itaparica e o Baixo Sul mais rapidamente à cidade de Salvador, aumentando assim as trocas culturais entre todas as comunidades envolvidas.
Na entrada de Matarandiba às margens da BA-001 há um portão, uma guarita e um vigilante, que monitora/controla o acesso das pessoas que necessitam cruzar a estrada para chegar até a vila, demonstrando a violência simbólica a que é submetida a comunidade, refletindo interesses que não condizem com a oferta de bem-estar para os moradores da comunidade. No início da instalação somente aqueles que estivessem munidos de uma carteirinha emitida pela empresa podiam entrar nas terras, o que causava grande desconforto e constrangimento aos que esqueciam ou não possuíam o documento.
Os 8 km de estrada de barro são marcados pela presença de uma vegetação atlântica remanescente, composta por árvores de grande porte, pertencente à floresta ombrófila densa, dendezeiros, bananeiras selvagens e bambus, além de ecossistemas associados (manguezais, vegetação de restingas e brejos) que marcam o rico cenário existente e sua biodiversidade. Contrastando com o bioma nativo, percebemos a existência de placas por toda parte, advertindo a presença de tubulação enterrada e proibindo escavação em todo o território, alternadas com sinalizações de reserva ambiental com o logo da Dow. Quilômetros de tubos de ferro recortam a paisagem, e é através desses tubos que a sal-gema é conduzida até a base de Aratu, enterradas no azul da baía. Na ordem de proibições, também se encontra a negação para a caça, extração de madeira ou produtos da mata que ajudavam na sobrevivência, apesar da comunidade já praticar o manejo sustentável antes da chegada da empresa e depender dela para a execução de suas atividades. Além das sinalizações descritas, existem ainda diversos alertas espalhados em áreas de tensão e zona de risco.
Aqui se constituem as estruturas de poder e os modos de resistência em uma luta presente na história do Brasil, envolvendo corpos pretos, direito à terra e a supremacia do poder econômico. Da relação forçada entre o privado e o comunitário, nasceram conflitos gerados pela monopolização do território, onde uma empresa estrangeira detém a propriedade, força, e influência na vida social, econômica e política, provocando pobreza, insegurança e instabilidade na população local.

Resistência

Mercedes (79 anos) e Gela (78 anos), antigas moradoras da comunidade e habitantes da Região do Cruzeiro, narram com muita lucidez que, com a chegada da Dow, tentou-se negociar a saída da comunidade do lugar onde estão para uma área mais próxima à rodovia, enfatizando: “Como uma comunidade que vive do mar vai sobreviver longe dele? Vai viver do quê? Vai é morrer de fome!”. Assim a comunidade enveredou por um processo de resistência, onde havia os que gostariam de negociar e sair da comunidade e aqueles que resistiram à época e continuam resistindo numa disputa que já dura meio século.
Resistência é uma ação necessária para grande parte das comunidades tradicionais, devido à processos fundiários mal resolvidos, incapazes de promover verdadeira legalização da terra e que exigem vigilância constante. Um processo, visto como neocolonização que retira da comunidade a terra e destrói o ambiente em nome de um desenvolvimento que não atinge a todos e que compromete as várias formas de vida daquele território.
Negar-se a sair do lugar daquele lugar significava também preservar sua história, a memória de seus ancestrais e as relações construídas no presente. Não se trata apenas de uma relação territorial no campo espacial ou físico, mas a discussão abriga a defesa do espaço relacionando-se com a construção da identidade em um complexo sócio-étnico-cultural, onde são impressas memórias e os significados que justificavam as razões de permanência e preservação.
Elementos geográficos como o mar, a terra, as fontes e fronteiras territoriais compõem os espaços simbólicos que marcam a construção da identidade na vila, constituindo assim a subjetividade de seus moradores. Esse povo do mar, guiado pelo movimento da maré e suas diversas roupagens: maré vazante, maré cheia, maré alta, maré baixa, maré que leva e traz seus filhos e generosamente promove sustento e conexão, proporcionando trabalho e memória em um espaço/tempo concreto, não seria o mesmo longe do seu mar, a partir de uma lógica econômica específica e diferente da lógica do capitalismo.

4.2. A VILA CONTEMPORÂNEA, O TRABALHO E SUA GENTE

A composição atual da vila de Matarandiba é muito diversa daquela descrita no passado por seus moradores, possuindo na atualidade uma dinâmica social e urbana estruturada em gradativa expansão desde o final da década de 1980, numa vida que nunca deu trégua. As casas de adobe aos poucos foram se tornando casas de alvenaria, das torneiras passou a sair água, chegou energia elétrica, iluminação pública, calçamento, o posto, a escola. Apesar das melhorias, a vila ainda conta com um acúmulo de déficits que interfere na qualidade de vida dos moradores e no avanço dos indicadores de desenvolvimento humano.
Olhando atentamente percebemos os rastros da atividade pesqueira e extrativista nas calçadas, diante da presença dos sambaquis ou redes de pesca na área externa das casas. Em algumas delas, as conchas vazias ainda servem como brita na elaboração do concreto que uniformiza as calçadas, e em alguns quintais as mesmas conchas servem para revestir o barro. Segundo Santana (2011), a pesca coletiva era comum na vila. Alguns Pescadores/as se juntavam, pegavam a rede emprestada e depois dividiam o pescado entre eles. Os maiores eram vendidos em Jiribatuba, Tairu ou mesmo Mar Grande, sendo o dinheiro repartido entre eles.
Um traço típico de sua arquitetura são as casas geminadas, sem recuos, construídas no alinhamento das calçadas, tendo a maioria delas mais três cômodos, sendo raras as construções sem revestimento externo. Apesar de um passado de muitas restrições, as condições de habitação do presente melhoraram. As casas atuais são de bloco e cobertas com telhas de cerâmica ou laje.
Desde a aquisição das terras pela Dow, a comunidade foi impedida de expandir sua área, limitando assim o raio de crescimento da vila e a construção de novos imóveis, obrigando as famílias a construir suas edificações de maneira geminada, tendo em vista a quase inexistência de terrenos disponíveis, obrigando a verticalização de algumas construções, tendo a extensão do quintal variada pela quantidade de filhos que competem com a ainda crescente demanda por habitações de lazer por parte dos moradores sazonais, o que ocasiona um déficit habitacional. Essa não é uma situação exclusiva de Matarandiba, mas uma maneira de se organizar muito comum entre as classes populares, que utilizam o espaço da laje, do quintal cuja expressão se popularizou com o nome de “puxadinho” para erguer novas casas.
A ação descrita é configurada foi configurada em um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2009, como uma necessidade a ser cumprida pelo Brasil como estratégia de desenvolvimento, o que torna a questão da moradia um tema necessário no contexto das políticas públicas. Nesses espaços imperam as relações consanguíneas: filhos, netos, sobrinhos, em áreas cuja imposição do poder econômico dita as regras da vida coletiva, comprovando que a política habitacional dessas populações revela o processo de negação à ocupação do território socioespacial em nome dos interesses privados.
Souza (2019) aduz que, para a construção de novas casas em área da empresa, é necessária uma autorização da Dow, uma liberação da Secretaria de Meio Ambiente do município de Vera Cruz/BA. Mediante ação articulada da comunidade, a Dow doou um terreno para a construção de 20 casas. Todavia mediante o impasse entre a empresa e o município diante do pagamento e desmembramento da área doada, as pessoas da comunidade se sentiram desmotivadas pela ação preterida.

Melhorias na infra-estrutura de

Diversas conquistas são apresentadas pela comunidade desde a chegada da Dow Brasil. Com, ela também vieram algumas melhorias na infraestrutura, tais como transporte, que passou a ser terrestre, facilitando o acesso ao continente o apoio às escolas locais, os serviços de saúde em sua oferta médica e odontológica, e as ações de caráter cultural. Contudo, a comunidade ainda é carente de serviços essenciais básicos e à medida que paulatinamente conquistou o acesso, perdeu na mesma proporção a posse e o usufruto de seu território.
Estruturada a partir de nove ruas, em sua maioria permitindo mão e contramão, possui como eixo central, o Largo do Tamarineiro, onde há também uma igreja católica cujo padroeiro é Santo Amaro e duas igrejas evangélicas (Igreja Batista e a Igreja Neopentecostal de Matarandiba, localizadas em pontos equidistantes). Na parte mais alta da vila, região indicada como pólo de nascimento da mesma, residem antigos moradores, não sendo acessada por veranistas. A região conhecida como Alto do Cruzeiro, possui uma estátua de Cristo com braços abertos, no alto da colina, onde é possível observar o mar que cerca a comunidade, as ilhas adjacentes e a mata que os envolve.
Na área do porto, vemos atracadas algumas canoas de fibra de vidro, embora a grande maioria delas ainda seja de madeira movidas a motor. Logo acima, contamos com uma praça equipada com alguns balanços que constituem a área de lazer e uma quadra logo ao lado, em frente ao campo de areia que se desfaz com a subida da maré. Na mesma região, fica a unidade de saúde Jenuário Ivídio de Freitas, dispondo de um técnico em enfermagem diariamente e, quinzenalmente, um clínico geral, que realiza suas consultas mediante agendamento. Qualquer procedimento de maior complexidade é encaminhado para a sede do Município, a Capital ou ainda Santo Antônio de Jesus. Como em outras comunidades, acumula um conjunto de déficits que impedem o pleno desenvolvimento da mesma. Bem próximo à unidade de saúde, existe o único bar / restaurante da vila que se mantém aberto durante todo o ano.
No que diz respeito à educação, duas escolas públicas recebem as crianças em idade escolar: a Escola Hilton Rodrigues destinada à educação infantil, acolhendo meninas e meninos na Escola Juvenal Galvão, ofertando ensino do Fundamental I, num total de 73 crianças nos turnos matutino e vespertino no formato de classes multisseriadas, acolhendo alunos de diferentes faixas etárias com o auxílio de 13 funcionários (merendeiras, coordenadora, professoras e diretoras todas do sexo feminino e moradoras da vila). A continuação dos estudos dos alunos matriculados no Fundamental II e no Ensino Médio é realizada fora da vila no turno vespertino no Centro Municipal de Vera Cruz, na sede do Município.
Matarandiba possui uma sinalização discreta quanto ao potencial turístico e paisagístico, sendo pouco explorada ou conhecida por pessoas que não pertencem à Ilha de Itaparica. Apresenta baixa infraestrutura se comparada à grande maioria das praias da Ilha. Devido às condições naturais e humanas, tende a oferecer um turismo diferenciado e de base comunitária ancorado na experiência do nativo e na exploração das belezas naturais de seu território, a exemplo da Trilha do Pontal e a Fonte do Tororó, localizada em uma região ainda preservada e de grande representação estética, conhecida em todas as cartas náuticas, cujo acesso se dá apenas pelo mar. Não existe tombamento histórico para a Fonte, apesar da riqueza cultural e mitológica em torno de si, frequentemente utilizada como área de lazer pela comunidade local e por visitantes.
Há um conflito existente na comunidade no que diz respeito à exploração da vila, tendo em vista que o maior patrimônio por eles eleito é o “sossego”, sendo que a prática pode estar comprometida pela “invasão de estranhos”. Embora possuam muito orgulho de sua história e cultura, são extremamente receosos com a presença de terceiros não convidados na ilha. Tal comportamento se justifica diante das feridas dolorosas e não cicatrizadas do passado, para muitas delas essas pessoas vem até Matarandiba para “catar o marisco” deles. A metáfora utilizada significa o sequestro de suas riquezas e a condenação da comunidade a um quadro de escassez diante daquilo que um dia foi abundante. Aqui a referência é feita aos recursos minerais e naturais da ilha.
O acesso a Matarandiba ocorre de três maneiras: através do sistema Ferry-Boat entre os terminais São Joaquim-Bom Despacho , percorrendo uma distância de vinte e três quilômetros com embarque programado a cada 01:00 hora, somados as 36 km de Bom Despacho até Matarandiba; pelo Terminal Turístico Náutico da Bahia até o Terminal Marítimo de Mar Grande, em um percurso de 14 km e duração de 40 minutos somados aos 34 km até à vila; e partindo do baixo sul através da Rodovia Estadual BA-001 que liga o continente à Ilha de Itaparica através da Ponte do Funil. Partindo da Vila são aproximadamente 8 km em estrada de barro até a guarita que se conecta à Rodovia Estadual BA 001. As péssimas condições da estrada de dificultam e até impedem o deslocamento no período chuvoso.
A rota de transporte Matarandiba-Bom Despacho é administrada pela Ascoma (Associação Comunitária de Matarandiba), cujo valor da passagem conta com o subsídio, reduzindo de R$ 4,25 para R$ 3,50 realizando a rota nos respectivos horários: Partidas: 5:45 hs e 14:00 hs; Retornos: 09:00 hs, 12:00 hs e 17:00 hs. Embora não haja transporte comunitário na Rota Matarandiba – Mar grande, a comunidade ainda dispõe de outras ofertas de horário com valor integral oferecidas pela Coopetran. Partidas: 07:00 hs, 12:00 hs e 15:00 hs; Retorno 10:15 hs, 13:15 hs e 16:15 hs a depender da Maré. Caso não haja travessia, o transporte é suspenso. Domingo possui um horário especial, uma vez que a frota é reduzida, ficando limitados os horários. Partidas: 07:00 hs e 16:00 hs passando por Mar Grande e tendo Bom Despacho como destino final; e Retornos: 09:00 hs e 17:00 hs.
Quanto não atende aos horários, os moradores param em frente à entrada da localidade e pegam carona com aqueles que possuem carro particular, tendo em vista que o número de pessoas na ilha que possui automóvel ou motocicleta é muito baixo. Ainda assim, em circunstâncias especiais, algumas pessoas da vila locam o carro de um morador que se dispõe a fazer o trajeto como possibilidade para conseguir uma renda extra.
Nenhuma rota está disponível a partir das 18:00 hs, o que inviabiliza a realização de qualquer atividade em período noturno fora da ilha. As más condições da estrada impossibilitam a contratação de carros particulares como táxis, tendo apenas um pequeno trecho, cerca de 2 km, entre o local onde fica a instalação dos prédios da Dow e uma das suas áreas de perfuração, asfaltado. Diante da baixa demanda os preços tornam-se elevadíssimos, o que inviabiliza a locação de um carro particular por parte dos moradores locais. Há aqueles que, ausentes todas as possibilidades fazem o percurso da guarita até a vila, caminhando

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