Aparência а pandemia da COVID-19 em nossas vidas

A pandemia da COVID-19 chegou ao Brasil trazendo grandes desafios nas esferas econômicas, sociais, políticas e jurídicas. A questão do sistema carcerário frente à essa nova realidade tem sido bastante discutida, tendo em vista a situação de vulnerabilidade em que vive a população presa.

Para boa parte da sociedade, a garantia dos direitos das pessoas privadas de liberdade é vista como ato de benevolência àqueles que praticaram crimes. No entanto, a nossa Constituição não distingue o indivíduo titular de direitos e garantias, especialmente no que diz respeito a assistência à saúde e preservação à integridade física e moral.
Dessa forma, inicialmente, serão abordados os direitos e garantias das pessoas presas assegurados pelo ordenamento jurídico brasileiro, com enfoque nas disposições da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Execuções Penais, com destaque àqueles mais importantes para o deslinde do presente artigo.
Propõe-se, ainda, uma análise sobre a realidade vivida nos sistemas carcerários, bem como se, de fato, a integridade física e moral dos presos são asseguradas de forma efetiva, principalmente em tempos de pandemia.
Necessária, ainda, se faz a análise das medidas adotadas pelo Estado de modo a controlar a proliferação da COVID-19 nos estabelecimentos prisionais, em razão das condições precárias de saúde e higiene oferecidas à população privada de liberdade.
Por último, será analisada a questão da segurança pública ante as medidas de urgência recomendadas pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, tendo em vista o contexto caótico do alastramento do coronavírus nos estabelecimentos prisionais.

Direitos e garantias fundamentais assegurados à população carcerária.

A pessoa presa em estabelecimentos carcerários brasileiros, assim como qualquer indivíduo livre, é possuidora de garantias e direitos fundamentais, inclusive reconhecidos em tratados internacionais de direitos humanos.
Neste contexto, faz-se necessário destacar o entendimento de Nucci, que bem explana sobre a conservação dos direitos e garantias das pessoas presas, independente do crime ou violência cometidos:

Quando se tratar de pena privativa de liberdade, restringe-se apenas seu direito de ir e vir – e os direitos a ele conexos, como, por exemplo, não ter direito integral à intimidade, algo fora de propósito para quem está preso, sob tutela e vigilância do Estado diuturnamente -, mas o mesmo não se faz no tocante aos demais direitos individuais, como a integridade física, o patrimônio, a honra, a liberdade de crença e de culto, entre outros.

Mirabete também corrobora deste entendimento:

Por estar privado de liberdade, o preso encontra-se em uma situação especial que condiciona uma limitação dos direitos previstos na Constituição Federal e nas leis, mas isso não quer dizer que perde, além da liberdade, sua condição de pessoa humana e a titularidade dos direitos não atingidos pela condenação.

Dessa forma, neste tópico, pretende-se destacar as garantias fundamentais elencadas pela Constituição Federal de 1988, bem como os direitos previstos na Lei de Execuções Penais, que são suficientes para demonstrar que, independentemente do potencial ofensivo da infração cometida, os direitos e garantias devem ser resguardados, sobretudo, como preservação da integridade física e moral da pessoa privada de liberdade.
Os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal estão, basicamente, elencados em seu artigo 5º, sendo destacados, abaixo, os mais importantes para a análise da política carcerária frente à pandemia do novo coronavírus:

Art. 1º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança a à propriedade, nos seguintes termos:
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
LVII – ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória;
LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Ainda, o art. 196 da Constituição Federal assegura a qualquer indivíduo, sem distinção, a prestação efetiva e gratuita de assistência à saúde, senão vejamos:

Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

A Lei de Execução Penal , dispõe, por sua vez, que, dentre outros deveres, o Estado deverá prestar assistência material e assistência à saúde da pessoa presa:

Art. 12. A assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas.
Art. 13. O estabelecimento disporá de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destinados à venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração.
Art. 14. A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico.
§ 1º (Vetado).
§ 2º Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento.
§ 3º Será assegurado acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido.

A referida lei elenca, ainda, uma extensa lista dos direitos garantidos ao preso, dentre elas a assistência material, assistência à saúde, assistência jurídica, direito à visitação e respeito à integridade física e moral dos condenados e presos provisórios:

Art. 40 – Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios.
Art. 41 – Constituem direitos do preso:
I – alimentação suficiente e vestuário;
II – atribuição de trabalho e sua remuneração;
III – Previdência Social;
IV – constituição de pecúlio;
V – proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;
VI – exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII – assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII – proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX – entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
XI – chamamento nominal;
XII – igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;
XIII – audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV – representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente.

No entanto, apesar de todos os direitos e garantias fundamentais assegurados às pessoas presas, sabe-se que o Brasil sempre viveu uma crise no que se refere ao sistema prisional.
A situação de vulnerabilidade em que vive o indivíduo preso, na maior parte dos estabelecimentos carcerários, é grave e preocupante, principalmente em época de pandemia, tendo em vista o risco de propagação intensa do COVID-19, sendo necessária uma atuação efetiva e emergencial por parte do Poder Público.

A realidade nos estabelecimentos prisionais x covid-19

Conforme já exposto, o sistema carcerário brasileiro, em regra, é bastante ineficiente quando se trata do cumprimento dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo preso. Tal fato se deve, principalmente, à superlotação dos estabelecimentos carcerários, consequência, também, da falta de celeridade na realização de audiências de custódia e julgamentos nos processos criminais.
Em pesquisa realizada pelo Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, em dezembro/2019 , apurou-se que, naquele ano, haviam 755.274 pessoas presas no Brasil, em unidades com lotação de 197%.
É fato público e notório as condições insalubres em que vive boa parte da população carcerária, seja pela falta de higienização das celas, pela inconstância de água ou pela escassez de materiais de higiene pessoal, sendo constantes os surtos viróticos, como tuberculose, AIDS e, atualmente, o sarampo.

Diante deste cenário precário, questiona-se, qual a política poderia ser implementada pelos estabelecimentos carcerários a fim de mitigar a proliferação do coronavírus? Como manter o distanciamento social entre os presos ou isolamento para aqueles que apresentem sintomas se, com base nos dados divulgados pelo Infopen, é possível que as celas são ocupadas por cerca de 40 presos?

De fato, é humanamente impossível a aplicação das medidas de prevenção sugeridas pela OMS, pelo Ministério da Saúde, pelos Estados e por autoridades sanitárias, nos sistemas carcerários brasileiros.

A situação carcerária frente à pandemia do coronavírus, foi analisada pelo STF na ADPF 347/DF, ante a arguição do Partido Socialismo e Liberdade – PSOL de “reconhecimento da figura do estado de coisas inconstitucional relativamente ao sistema penitenciário brasileiro”. O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), atuou na condição de amicus curiae, e levantou a questão da expansão da COVID-19 nos sistemas prisionais ante a situação precária e desumana em que vive a população carcerária. Requereu, portanto a concessão de liminar para que os juízos competentes implementassem medidas de liberdade condicional, regime domiciliar, substituição de pena, medidas alternativas ou progressão de pena, conforme cada caso, para aqueles que se enquadrassem no grupo de risco.

O Ministro Marco Aurélio recomendou, cautelarmente, que todos os juízos de execução analisassem os processos e aplicassem, quando possível, as providências sugeridas pelo IDDD, de imediato, finalizando a decisão da seguinte forma:

De imediato, conclamo os Juízos da Execução a analisarem, ante a pandemia que chega ao País – infecção pelo vírus COVID19, conhecido, em geral, como coronavírus –, as providências sugeridas, contando com o necessário apoio dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais. A par da cautela no tocante à população carcerária, tendo em conta a orientação do Ministério da Saúde de segregação por catorze dias, eis as medidas processuais a serem, com urgência maior, examinadas:

a) liberdade condicional a encarcerados com idade igual ou superior a sessenta anos, nos termos do artigo 1º da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003;
b) regime domiciliar aos soropositivos para HIV, diabéticos, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas, imunodepressoras ou outras suscetíveis de agravamento a partir do contágio pelo COVID-19;
c) regime domiciliar às gestantes e lactantes, na forma da Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016 – Estatuto da Primeira Infância;
d) regime domiciliar a presos por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça; e) substituição da prisão provisória por medida alternativa em razão de delitos praticados sem violência ou grave ameaça;
f) medidas alternativas a presos em flagrante ante o cometimento de crimes sem violência ou grave ameaça;
g) progressão de pena a quem, atendido o critério temporal, aguarda exame criminológico; e
h) progressão antecipada de pena a submetidos ao regime semiaberto”.

No entanto, a referida decisão não foi recepcionada pelo STF , sob o argumento de que o assunto não poderia ter sido debatido naquela ADPF, pois fugia das questões nela tratadas, restando prejudicada a medida cautelar.
Diante disso, quais as medidas adotadas pelos Poder Público a fim de mitigar a proliferação do coronavírus nos estabelecimentos carcerários, já que é impossível manter o isolamento ou distanciamento social em presídios superlotados?

O poder judiciário e os meios de controle da covid-19.

O Conselho Nacional de Justiça – CNJ publicou a Resolução nº 62, de 17 de março de 2020, recomendando medidas preventivas a serem adotadas pelos Tribunais e Magistrados, a fim de garantir a proteção e saúde das pessoas privadas de liberdade, bem como dos servidores e agentes públicos que integram o sistema da justiça penal, prisional e socioeducativo.

Dentre as inúmeras medidas recomendadas pelo CNJ, destacam-se :
I- A reavaliação nas prisões provisórias priorizando-se aqueles que integram o grupo de risco, que sejam mães ou responsáveis por menores de 12 (doze) anos, que estejam em estabelecimentos penais superlotados ou em prisão preventiva por mais de 90 (noventa) dias, desde que não se trate de crime com violência ou grave ameaça (art. 4º, I, a, b, c);
II – A excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva (art. 4º, III); a concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto, para as pessoas do grupo de risco, mães ou responsáveis por menores de 12 (doze) anos e que estejam em estabelecimentos penais com superlotação, devendo ser observada a Súmula Vinculante 56, do STF (art. 5º, I)
III – Concessão de prisão domiciliar em relação a todas as pessoas presas em cumprimento de pena em regime aberto e semiaberto, ou que esteja com suspeita ou confirmação de COVID-19 (art. 5º, III e IV).
IV – Prisão domiciliar para as pessoas presas por dívida alimentícia (art. 6º);
V – Restrição temporária de visitas (art. 7º);
VI – Não realização das audiências de custódia, devendo ser analisado o auto de prisão em flagrante para relaxar a prisão, conceder liberdade provisória, e, excepcionalmente, converter a prisão em preventiva (8º, I, II, III).

No entanto, o trâmite processual no nosso ordenamento jurídico é lento, e, na prática, mesmo após cinco meses de pandemia, existem inúmeras prisões em flagrantes não analisadas, inúmeras prisões preventivas que excedem o prazo sem que seja feita a reavaliação recomendada pelo CNJ, inúmeros requerimentos de mães e presos do grupo de risco que se enquadram nas hipóteses de prisão domiciliar ou progressão de pena ainda não analisados.

Resultado da morosidade do Poder Judiciário em analisar a situação dos indivíduos presos, é o número assustador e crescente de casos de COVID-19 nos presídios brasileiros. Conforme levantamento feito pelo CNJ em 26 de agosto de 2020 , foram registrados 27.177 casos, com 177 mortes. Considerando que não há testes para toda a população carcerária, presume-se que o número de casos é muito superior ao registrado.

Outro aspecto que se deve ressaltar, é a questão da visitação dos familiares. Desde o mês de março as visitas estão suspensas, sendo que, somente alguns presídios têm permitido contatos dos presos por videoconferência, o que tem causado grande revolta. Ademais, a suspensão da visitação não foi capaz de mitigar a proliferação do coronavírus nos estabelecimentos carcerários, haja vista que há contato constante dos presos com os agentes de segurança pública.
Não obstante, a proibição da visitação tem causado dificuldades aos familiares no fornecimento dos kits de higiene básica aos presos, já que só podem ser entregues via SEDEX. Considerando que a maior parte da população carcerária é de família de baixa renda, as famílias que, em sua maioria, já tinham dificuldades em adquirir os kits e entregá-los no dia da visitação, agora precisam, ainda, arcar com o custo dos correios.
Fato é, que os kits de higiene básica estão sendo enviados com menor periodicidade, seja pelo custo do envio do SEDEX ou pelo prazo de entrega dos correios.
Além disso, é proibido o envio de qualquer item que contenha álcool em sua composição, motivo pelo qual o álcool em gel não pode ser enviado pelos familiares. O Estado, que não fornece sequer os itens de higiene básica, como sabonetes, água sanitária, desinfetante, estaria fornecendo o álcool em gel, imprescindível para evitar o contágio do coronavírus, à população carcerária?
Percebe-se que, apesar de todos os direitos garantidos constitucionalmente aos presos, bem como as recomendações do CNJ para a preservação da saúde e integridade física das pessoas privadas de liberdade, é patente a ineficácia do Poder Público para aplicação das medidas.

Dessa forma, a população carcerária, em sua maioria, permanece em locais insalubres, abafados, sem as condições mínimas de higiene pessoal, aguardando a efetividade do Poder Judiciário, enquanto o número de casos e mortes de COVID-19 crescem de forma assustadora nos estabelecimentos prisionais.

A efetividade na observação das recomendações do CNJ não se trata de falha na segurança pública, uma vez que o Poder Judiciário tem meios de monitorar aqueles que cumprem prisão domiciliar. Não se trata, ainda, de beneficiar aqueles que cometeram crimes. Trata-se de observância aos direitos humanos, de preservação da integridade física e moral de pessoas garantidoras de direitos fundamentais.

Conclusão

O presente artigo se propôs a realizar uma breve análise sobre o direito das pessoas privadas de liberdade e a realidade vivenciada nos estabelecimentos carcerários, especialmente no momento que vem sendo enfrentado por toda a sociedade em razão da pandemia.
Ante todo o exposto, conclui-se que se torna impossível a aplicação das medidas de prevenção recomendadas pela Organização Mundial da Saúde – OMS, em especial no que tange ao distanciamento social, isolamento dos indivíduos com suspeita ou com confirmação de contaminação pelo coronavírus e utilização constante do álcool em gel.

Estamos diante de quase 800.000 pessoas expostas à contaminação em massa por viverem em ambientes insalubres, sem ventilação, superlotados, desprovidas de materiais básicos de higiene pessoal, o que tem se agravado com a dificuldade dos familiares em enviar os kits com os itens de materiais básicos de saúde.

É certo que há um grande desafio para a alteração deste cenário, mas é de extrema urgência a busca do Poder Judiciário em dar maior efetividade no cumprimento das recomendações contidas na Resolução nº 62/2020. Não são raros os casos em que o indivíduo fica em prisão provisória por um longo período para depois ser absolvido por ausência de provas.

Não se trata de violação da segurança pública, mesmo porque a recomendação foi precisa de que a análise de liberdade provisória, relaxamento de prisão ou progressão de pena, deve ser feita para aqueles que são do grupo de risco e para os crimes sem violência ou grave ameaça.

O cumprimento das referidas medidas é o único meio de garantir a proteção à integridade física e moral, respeitando, assim, os direitos fundamentais previstos constitucionalmente àqueles que se encontram em reclusão nos estabelecimentos prisionais.

https://jus.com.br/artigos/33962/do-caos-do-sistema-prisional-brasileiro

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