A partir das experiências narradas sobre as crianças selvagens, compreende-se que o homem é um ser social e que precisa viver em sociedade para se estabelecer e se desenvolver como tal. Privado do convívio em sociedade, o indivíduo não desenvolverá as atribuições e capacidades cognitivas, afetivas e humanas que lhes são atribuídas. Também é no convívio com o outro e com o meio que se estabelece as condições para a construção da aprendizagem.
Como relatado no texto “A construção social do sujeito”, das autoras Claudia Davis e Zilma Oliveira, as meninas selvagens da índia, Amala e Kamala, ao serem privadas do contato com outras pessoas não aprenderam a se comunicar e nem desenvolveram processos de pensamento lógico. Isso mostra a importância da interação social para a aquisição da linguagem e para o processo de aprendizagem de modo geral. Trazendo essa relação para o ensino nas escolas e na sala de aula, entende-se que o contato da criança com os outros e em especial, com a fala do professor e com as diversas fontes de leitura, incluindo as literárias, vão favorecer o desenvolvimento da comunicação e da linguagem na criança, a fim de que ela adquira capacidade e habilidade de comunicação, tanto verbal quanto escrita, e de compreender o que ouve, o que lê e o que se passa ao seu redor.
Segundo Davis e Oliveira , “vivendo em sociedade, a criança aprende a planejar, direcionar e avaliar a sua ação. Ao longo desse processo, ela comete alguns erros, reflete sobre eles e enfrenta a possibilidade de corrigi-los. Experimenta alegrias, tristezas, períodos de ansiedade e de calma. Trata de buscar consolo em seus semelhantes. Não concebe a vida em isolamento. É também no convívio social, através das atividades práticas realizadas, que se criam as condições para o aparecimento da consciência que é a capacidade de distinguir entre as propriedades objetivas e estáveis da realidade e aquilo que é vivido subjetivamente”.
Também o trabalho realizado por Jorge Gonçalves e Maria Alexandra Peixoto – O menino selvagem: Estudo do caso de uma criança selvagem retratado no filme “O menino selvagem” de François Truffaut – fornece importantes possibilidades de reflexão a respeito da relação das experiências das crianças selvagens e a formação social do homem e seu processo de aprendizagem.
Um trecho do texto nos remete a uma reflexão importante sobre a educação e o processo de aprendizagem : “Coloca-se de novo a questão da surdez. Será que ele ouve ? Como o professor Itard explica, ele “ouve sem escutar, tal como olha sem ver”. Será necessário ensinar-lhe tudo, inclusivamente ensinar-lhe a escutar e a ver”. É possível que o que acontecia com a criança selvagem, ainda que em níveis bem diferenciados, aconteça com algumas crianças dentro da sala de aula, que não conseguem compreender o que ouvem, lêem ou vêem, fato que exigiria do educador a mesma e tamanha paciência, dedicação e sabedoria para ensinar esse aluno a escutar e ver. Inclusive,m exigindo atenção ao processo de aprendizagem como um todo, e não focando apenas na transmissão dos conteúdos e resultados de testes e atividades.
Outro aspecto descrito no texto também nos leva a pensar no processo de aprendizagem de uma criança, principalmente no que se refere a um ensino que procura corresponder à rígidas metodologias, sem considerar a diversidade e especificidades individuais de cada aluno. No caso do menino selvagem, em uma refeição, quando a governanta lhe põe um prato de sopa à frente, o menino imediatamente debruça a cara sobre o prato como um animal. Então, ela ensina-o a comer com a colher. Isso nos leva a indagar: Porque ele não poderia comer com a boca debruçada no prato? Porque era tão importante ensiná-lo a comer de colher? Porque esses comportamentos incomodavam tanto? Aprender a comer de colher era importante para o menino ou para as pessoas que conviviam com ele? Sem julgar o mérito da questão, podemos fazer um paralelo com as situações de ensino e aprendizagem. Quem é de fato, ou deveria ser sempre, o centro do processo de ensino e aprendizagem? O que e como ensinamos corresponde, verdadeiramente, aos interesses e necessidades dos alunos, ou pode estar mais relacionado às regras, tradições e costumes educacionais já estabelecidos, e que nem sempre atendem para que haja aprendizagem, apropriação de conhecimento, transformação e formação integral do aluno? Na situação das crianças selvagens o objetivo era, sobretudo, transformá-los em seres humanos, compensar e vencer os atrasos e limites impostos pelo isolamento social a que essas crianças foram submetidas. E no caso dos alunos? Qual o objetivo do professor em relação a eles? São questões importantes de serem pensadas dentro da atuação do educador e do ensino de modo geral.
A eficácia social importante fator no processo de aprendizagem
Ainda, é possível observar, a partir da experiência com o menino selvagem, a questão da afetividade como fator social importante dentro do processo de aprendizagem. A boa relação professor-aluno promove, dentro do processo de ensino e aprendizagem, condições favoráveis para a construção de conhecimentos e desenvolvimento de habilidades, não somente de relacionamento, o que já representa um ganho, mas também dos aspectos cognitivos. Isso porque o aluno procura corresponder às expectativas do professor e também se espelha nele para aprender, encontrando, inclusive, alegria nesse processo.
Além disso, essa relação, quanto mais próxima, possibilita ao professor perceber em que nível o aluno se encontra, e o quento pode avançar, estabelecendo condições para novas estratégias de ensino e aprendizagem, como se percebe a situação narrada : “Quando Victor pede água com o copo na mão, o professor tenta que ele diga a palavra “água”. Mas não consegue. O salto que é exigido ao menino é demasiado grande”. Ao perceber as limitações e avanços do aluno, agindo com cautela e sabedoria diante disso, o professor demonstra respeitar o ritmo e o tempo de aprendizagem do aluno, favorecendo esse processo.
Outra cena narrada também traz bons ensinamentos : “A certa altura, quando a Mme Guérin arruma a casa, troca acidentalmente o lugar de certos objectos. Victor volta a colocá-los no sítio correcto. O professor Itard resolve então aproveitar esta sua “paixão pela arrumação”, procurando situações em que a aplicação da sua memória visual seja posta ao serviço da aprendizagem da escrita e da leitura”. Essa cena nos mostra o quão necessário é relacionar o contexto do aluno ao processo de ensino e aprendizagem, considerar o conhecimento prévio, as experiências que o aluno traz consigo, mas é preciso proximidade, atenção dedicada a cada estímulo e interesse que o aluno demonstra para aproveitá-los dentro do processo de aprendizagem.
E Depois de vencer vários desafios com o menino selvagem, o médico e educador observa que, apesar de não ter se tornado um homem, em dado momento, a criança já não era mais selvagem, ou seja, havia acontecido uma transformação, e por isso, decide continuar com os exercícios, com a educação e o ensino ao menino. Esse relato leva ao entendimento de que é necessário e possível perceber o desenvolvimento do aluno com entusiasmo, o que não se verificará somente através de testes e avaliações isoladas, e ter entusiasmo para prosseguir, mesmo diante das dificuldades.
Por fim, ainda que não se encerre aqui todas as lições e relações que as experiências das crianças selvagens tragam para a formação social do homem e o processo de aprendizagem, ficou evidenciado que esses dois processos concorrem juntos dentro de um mesmo espaço, tanto de lugar quanto de tempo, e esse espaço também se refere à escola e especificamente à sala de aula. O processo de aprendizagem acontece inerente à relação do indivíduo com a sociedade, com o outro. Esse outro é a família, os desconhecidos, os amigos, as pessoas que compõem a escola e evidentemente o professor. Por isso é necessário que esse se atente para seu importante papel na vida dos alunos, tanto no processo de aprendizagem cognitiva quanto de formação humana.