Caso clínico – convulsão febril

1. Descrição do caso

ID: C.F., masculino, 1 ano e 3 meses, 10kg, natural e procedente de Curitiba, mora com os pais e 2 irmãos (5 anos e 8 anos).
QP: “convulsão”
HMA: a mãe relata que o filho apresentou um episódio de crise convulsiva há 1 hora, com duração de 4 minutos (melhora espontânea), com abalos tônico-clônicos generalizados, com movimentos bilaterais, com perda da consciência, sem liberação de esfíncter e sem cianose. A mãe conta que foi o primeiro episódio de convulsão da criança. Refere que o filho iniciou há 3 dias com um quadro respiratório com tosse seca, coriza mucopurulenta, espirros, congestão nasal e sem sinais de desconforto ou insuficiência respiratória. Apresentou piora desse quadro de IVAS há 1 dia, com prostração e febre alta aferida (39,6⁰C), com melhora temporária com o uso de paracetamol, mas retorno da febre após 6 horas. Nega outros sintomas associados.

Histórico gestacional/parto: pré-natal sem intercorrências, parto normal à termo (39 semanas) sem intercorrências, peso 3,4kg ao nascer, perímetro cefálico 33cm, APGAR 9 e 10.

HMP: nega episódios prévios, comorbidades, internações prévias e alergias. Desenvolvimento neuropsicomotor adequado para a idade.
HMF: pai e um dos irmãos apresentaram quadro de convulsão relacionado a pico febril na infância, porém sem investigação diagnóstica. Negam outras crises ou outras doenças. Mãe hígida.
Exame físico:

Dados vitais: FC 160bpm, FR 35ipm, Tax 39,7⁰C, satO2 96% em AA.
Paciente ativo e reativo, eutrófico, hipocorado +/IV, anictérico, acianótico.

Olhos profundos, presença de coriza mucopurulenta, oroscopia com faringe hiperemiada, ausência de exudato ou edema de amigdaliano, rinoscopia anterior com hiperemia de mucosas e otoscopia dentro do padrão de normalidade. Adenomegalia não palpável em região cervical.
ACV: bulhas cardíacas rítmicas normofonéticas em 2 tempos e sem sopros.

AP: expansibilidade e elasticidade preservadas, MV+ simétrico e bilateral, com roncos difusos e som claro pulmonar à percussão.
Abdome globoso, indolor à palpação superficial e profunda, com fígado palpável à 1cm do rebordo costal direito, sem visceromegalias palpáveis, RHA+ e timpânico à percussão.

Membros superiores e inferiores com pulsos presentes e simétricos, bem perfundidos, sem edema ou sinais de empastamento.
Neurológico: ativo e reativo, mobiliza os 4 membros, sem sinais de irritação meníngea, fontanelas normotensas, pupilas isocórias e isofotorreagentes.

2. Discussão

A convulsão febril (CF) é um evento neurológico da infância que ocorre em associação com febre, sem sinais de infecção intracraniana ou de causa definida. O evento ocorre em crianças entre 6 meses e 5 anos de idade e epidemiologicamente é a desordem neurológica com convulsão mais comum da infância. Ela ocorre em cerca de 2-4% das crianças menores de 5 anos, com maior incidência entre 6 meses e 18 meses de idade. A fisiopatogenia é multifatorial, com uma combinação de predisposição genética, fatores ambientais e imaturidade do sistema nervoso central (SNC) em desenvolvimento, culminando em hiperexcitabilidade neuronal e convulsão em resposta à febre.

As crises convulsivas podem ser divididas entre febris e não-febris. As crises não-febris estão mais relacionadas a epilepsia e doenças neurológicas com causa definida e são excluídas da definição de convulsão febril. Os critérios de definição e uma crise febril são:

a) A convulsão está associada a uma temperatura maior que 38⁰C;
b) Idade acima de 6 meses e inferior à 5 anos;
c) Ausência de infecção ou inflamação do sistema nervoso central;
d) Ausência de distúrbios metabólicos agudos causadores de convulsão;
e) Ausência de história prévia de crises convulsivas febris.

As crises febris ainda podem ser divididas novamente em duas formas: simples e complexa. A convulsão febril simples é a mais comum (80-85% dos casos) e se apresenta com uma crise convulsiva generalizada (com perda de consciência), com duração inferior a 15 minutos e que não recorre em até 24 horas. A complexa é uma crise convulsiva com padrão focal (que se apresenta com abalos unilaterais, por exemplo), com duração superior a 15 minutos e/ou que apresenta múltiplos episódios recorrentes dentro de 24 horas. Essa diferenciação implica em prognósticos distintos para os pacientes.

Os fatores de risco mais relacionados com as crises são:

a) Febre: a temperatura da febre está diretamente relacionada à deflagração do quadro. Quanto maior a temperatura, maior o risco de iniciar uma crise convulsiva. Estudos sugerem que o valor da temperatura possui maior importância do que a velocidade de ascensão da febre.
b) Infecção: a crise não está associada diretamente aos agentes etiológicos, porém está relacionada com a elevação de temperatura causada pelas infecções. Nos EUA e na Europa, cerca de 1/3 das crianças com convulsão febril tiveram associação com a infecção pelo herpesvírus humano 6 (HHV-6), relacionado majoritariamente a uma temperatura superior a 39,5⁰C. Outros agentes isolados, em ordem de prevalência, são: adenovírus, vírus sincicial respiratório (VSR), herpes simplex vírus (HSV), citomegalovírus (CMV) e HHV-7. No continente asiático, os principais agentes são influenza A, parainfluenza e adenovírus.

c) Vacinação: a imunização para difteria, tétano, coqueluche, sarampo, caxumba, rubéola, Haemophilus influenzae tipo B e poliovírus inativado (VIP) aumentam temporariamente o risco de crises febris.

d) Fatores genéticos: aproximadamente 1/3 das crianças afetadas apresentam história familiar positiva. O risco de apresentar uma crise é cerca de 20% se um irmão tiver histórico e 33% se os pais tiverem história de crise prévia. Estudos com gêmeos mostraram concordância genética importante para a crise, principalmente em monozigóticos. Estudos sugerem penetrância genética autossômica dominante.
e) Sexo: há uma predominância maior no sexo masculino

f) Outros fatores: exposição pré-natal à nicotina, deficiência de ferro e rinite alérgica, asma e outras doenças atópicas.
As crises convulsivas febris, na maioria dos casos, aparecem no primeiro dia de início da febre. Elas tendem a se apresentar com abalos tônico-clônico generalizados, com duração média de até 5 minutos e seguidas de um período pós-ictal curto. Alguns pacientes podem apresentar crises contínuas ou subsequentes (sem recuperação da consciência) por um tempo maior que 30 minutos, caracterizando o status epilético febril.

3. O diagnóstico da CF é clínico

Uma anamnese e um exame físico detalhados devem ser realizados para excluir outras doenças e confirmar os sinais clínicos da CF. É de suma importância conseguir dados da história clínica da criança, envolvendo as características da crise, duração, período pós-ictal, recorrência, comorbidades ou doenças prévias, presença de quadro agudo de infecções e investigação do desenvolvimento neuropsicomotor, assim como dados do exame físico envolvendo investigação de sinais meníngeos ou de infecções neurológicas, avaliação de fontanelas e fundo de olho buscando sinais de hipertensão intracraniana, sinais de acometimento neurológico focal, sinais de infecções que possam ser a etiologia da febre ou do quadro clínico apresentado.

A solicitação de exames complementares deve ser cogitada de forma individualizada para cada paciente. Uma criança com a história típica de CF simples, sem sinais de alerta no exame físico, na maioria dos casos não precisará de exames laboratoriais ou de imagem para confirmar o diagnóstico. Alguns exames podem ser utilizados para investigar e/ou descartar condições adjacentes.

Hemograma pode ser útil na investigação de infecções associadas; glicemia, creatinina, ureia e eletrólitos devem ser considerados em pacientes com suspeita de desidratação ou edema (especialmente os com história de êmese, diarreia ou ingesta hídrica insuficiente); parcial de urina e urocultura podem ser utilizados se suspeita de infecção do trato urinário. A punção lombar pode ser utilizada para investigar a presença de meningite ou infecção do SNC, porém é desnecessária para a maioria dos pacientes.

De acordo com a Academia Americana de Pediatria, as indicações para punção lombar são: sinais clínicos e de exame físico de irritação meníngea ou outros sinais relacionados às infecções do SNC; pacientes entre 6 meses e 1 ano não vacinados para Haemophilus influenzae B ou pneumococo; crianças em uso atual de antibioticoterapia (pode mascarar os sinais clínicos importantes). É importante lembrar de descartar hipertensão intracraniana antes de realizar a punção lombar para evitar complicações.

Para pacientes com esses sinais de hipertensão e também para casos de acometimento neurológico focal, suspeita de defeito cerebral estrutural e traumatismo craniano, deve ser considerado realizar exame de neuroimagem (tomografia ou ressonância de crânio). A eletroencefalografia não apresenta sinais característicos da CF e não é indicada de rotina para os pacientes, porém pode ser interessante nos casos de crises prolongadas ou com acometimento focal e pode demonstrar características sugestivas de epilepsia. Apesar da correlação genética familiar da CV, testagem genética não é recomendada para os pacientes.

O manejo do paciente é baseado em cessar a crise convulsiva atual, reduzir a temperatura como medida de conforto e tratar a causa base. É pouco comum a criança chegar ao serviço de emergência em decorrência da crise uma vez que o tempo médio de duração das crises é inferior a 5 minutos. Nesses casos, podem ser utilizados diazepam 0,1-0,2 mg/kg IV ou lorazepam 0,05-0,1 mg/kg IV, especialmente se a duração for maior que 5 minutos, monitorando os sinais vitais e os critérios de instabilidade. A redução da temperatura pode ser realizada com antitérmicos ou com medidas físicas (bolsas de gelo), visando o conforto da criança.

O tratamento da causa base deve ser instituído para esses pacientes. A maioria das crianças não necessita de hospitalização, salvo em casos de infecções graves ou com sinais de alarme (crises prolongadas, focais ou com ausência de retorno completo do nível de consciência). Uma parcela dos pacientes pode se apresentar com status epilético febril, sendo necessário o emprego de fenitoína e/ou outras drogas antiepilépticas para cessar o quadro.

No quesito recorrência, cerca de 30-35% das crianças apresentam um novo episódio da CF. Essa porcentagem varia com a idade em que ocorreu a primeira crise (crianças menores de um ano recorrem em 50-65% dos casos), sendo esse o fator mais determinante na recorrência. Outros fatores de risco são: história familiar de CF em parentes de primeiro grau, febre baixa ao entrar no departamento de emergência e curto espaço de tempo entre o aparecimento da febre e o surgimento da crise convulsiva.

Estudos demonstraram sucesso na profilaxia de recorrência com o uso continuo de ácido valproico e fenobarbital e uso intermitente de diazepam, entretanto estes não são recomendados rotineiramente pelas diretrizes de pediatria. A natureza benigna da CF e os efeitos colaterais dos antiepilépticos sugerem que, em geral, os riscos dessa terapia profilática superam os benefícios que ela pode trazer.

Por outro lado, a CF pode representar uma primeira manifestação da epilepsia e isso deve ser levado em conta nas avaliações médicas ao longo da vida desse paciente. O uso de antipiréticos é recomendado para alívio sintomático do paciente com CF e estudos demonstraram redução na ocorrência de novas crises durante esse mesmo episódio de CF. Por outro lado, os estudos não demonstraram esse efeito profilático na redução de novos episódios de CF no decorrer dos anos seguintes. Esse efeito pode ser explicado pelo mecanismo farmacológico dos antitérmicos: o paracetamol atua diminuindo a temperatura ao aumentar a dissipação de calor corporal, sem interferir na produção de temperatura, enquanto a fisiopatogenia da CF está associada majoritariamente aos momentos iniciais desse incremento na produção de calor. Outro fator de risco da CF é a imunização para certos patógenos, todavia a ausência de vacinação é desencorajada pelas autoridades pediátricas devido aos inúmeros benefícios para a saúde individual e populacional.

O prognóstico geral da CF é benigno e as sequelas neurológicas são raras. Estudos prospectivos avaliaram esses pacientes por 10 anos e demonstraram não ocorrer prejuízo no progresso acadêmico, no intelecto e no comportamento, Pacientes com CF simples não apresentaram aumento na mortalidade à longo prazo, enquanto pacientes com CF complexa apresentaram risco relativo quase duas vezes maior em dois anos.

Pessoas com histórico pessoal de CF na infância possuem risco um pouco maior de desenvolver epilepsia até a vida adulta que a população geral: o risco para crianças com crises simples aumenta em 1-2% e para crianças com crises complexas ou com história familiar de epilepsia aumenta 5-10%, em relação à população não acometida. A orientação familiar sobre o prognóstico favorável é de suma importância para tranquilizar a família e evitar ansiedade e uso desnecessário de medicações profiláticas.

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